a medula espinhal é uma fonte valiosa de calorias - sandices #2
sobre antropofagia e a inflexível flecha do tempo
meu restaurante favorito de shawarma desapareceu.
não era meu favorito por critério de excelência. era bom, mas sinceramente, acho que não tive variedade o suficiente de shawarmas na minha vida pra ficar apaixonado por algum deles em particular. era meu favorito por critério de frequência, por critério de preço, e agora, por critério de narrativa.
não foi algo recente. faz pelo menos quase um ano. redes sociais paradas, loja fechada, telefones sem sinal. provavelmente não desceu bem o enrolado de uma pandemia combinada com a especulação imobiliária de São Paulo, o único animal do mundo que é ao mesmo tempo necrófago e pecuarista, constantemente mantendo vivo o ciclo de apodrecimento urbano pra depois se esbaldar na carniça de pontos passados e casas demolidas.
eu poderia dizer que o restaurante simplesmente fechou. poderia conjecturar que faliu. não seria nem loucura pensar que alguém morreu: lembro de passar várias vezes na frente em 2020 e 2021, nas épocas em que a segurança de sair de casa (nem pra ir pra algum lugar, só tipo, pisar na calçada) ainda era uma discussão ativa, e estar funcionando normal. essa parte não é muito surpresa. nos vários sentidos da frase, pra muita gente não foi possível que a pandemia existisse.
e nada disso seria sincero da minha parte.
até chamar de restaurante é um pouco insincero. um restaurante implica mesas, cadeiras, garçons, um espaço que poderia ser outro restaurante. a banca de shawarmas existia num espaço que só podia ser uma banca de shawarmas.
desde antes de eu me mudar para cá, o espaço era só uma parede lisa, um anexo inexplicável de um hotelzinho aleatório, desses que desafia as leis da economia neoliberal, onde as pessoas pintavam murais. oito anos atrás, foi reformado por um cara que teve o tino de ser um dos dois vendedores de comida de rua do bairro inteiro em uma rua sempre lotada de pedestre, e aí atuchado de imigrantes. eu não falava nada de árabe, na época. não conseguia nem imaginar sobre o que eles ficavam gritando um com o outro enquanto eu tentava comer.
e o retângulo onde existiu uma banca de shawarmas tinha, se muito, uns dois metros de profundidade, uns seis ou sete de largura. cinco banquinhos fixos permanentemente capengas do lado da rua, elevados em um irritante e incompreensível degrau de elevação da calçada, perfeitos para tropeçar e cair ao tentar ir embora. uma bancada de tampo preto, de pedra, no meio, com estufas de lanchonete com esfihas e pães sírios aleatórios em cima. atrás, algo que até o senso lato chiaria de chamar de cozinha. fritadeira, microondas, duas geladeiras de bebidas, botijão de gás, bancada de preparação, prensador de sanduíches, e a pisde resistânce: dois espetos de churrasco grego, um de amálgama de frango e o outro de outro animal. o corredor atrás da bancada não aguentaria duas pessoas tentando passar por ele ao mesmo tempo, e quase sempre tinham três funcionários.
o cardápio no fundo era consistentemente riscado com preços novos. explicava o que era um shawarma para a pessoa que ainda não sabia que o que ela queria era um shawarma. a fiação estava sempre com uma cara esquisita, como alguém subindo numa escada apoiada em cima de outra escada. era também um daqueles restaurantes onde era óbvio que o lugar guardava certa importância para quem o criou, pois era um desses estabelecimentos que se apega ao sentimentalismo quase cartunesco de guardar o primeiro dinheiro lucrado.
a importância não me é muito exata, pra ser bem sincero. não sei decifrar o simbolismo e os significados de uma nota de cinco reais amarrotada grudada na parede em cima do microondas por um pedaço de durex.
tudo isso ficou escondido por alguns meses atrás de uma porta de aço fechada. foi suspenso no limbo entre um fechamento temporário (quando foi grudado na porta um pedaço de papel aleatório com um aviso dizendo que o restaurante voltaria) e um fechamento permanente (quando nada foi grudado em lugar algum). por muito tempo, o restaurante existiu, com seu logo acima de um toldo fechado, coroando uma fachada horrível de azulejos falsos em tons marrons. voltaria a qualquer momento. quem sabe o delivery, que eu nunca pedi, conseguisse sustentá-los. talvez, no pior dos casos, voltasse em outro lugar, sofrendo a morte por mil cortes à paulista sob um aluguel um pouco menos caro.
e aí, desapareceu.
há algo de cruel na existência de uma cidade. é um espaço autofágico, paradoxal. tudo já foi criado nela, então para outra coisa ser criada, algo precisa ser destruído antes, revertido ao nada.
talvez esses prédios sejam um experimento religioso, outra das muitas criações feitas à nossa imagem, organismos inertes igualmente incapazes de se transformar sem um custo pesado. e tornar-se outra coisa é uma afronta ao que já se é; enseja uma luta até a morte contra a existência ofendida, onde ninguém ganha de fato, pois a autoguerra é sempre pírrica. exige, no mínimo, energia que não temos. que não temos como ter. energia que não vem de nada que nasça no chão ou na água: energia que só vem ao cometer o crime de comer a própria carne.
é algo que tem me entristecido cada vez mais em São Paulo. essa cidade não tem esqueletos. tudo é triturado e inserido de volta no corpo. ínfima parte do que é construído dura mais do que uma única vida, e quase nada do que morre tem o direito de permanecer morto. nossas pouquíssimas ruínas são todas prédios sem história, relegados ao esquecimento, e as poucas que não são logo deixam de ser ruínas. uma ruína inútil é saturada de passado, um amontoado de rochas sem futuro; e em uma cidade como essa, a única coisa que se permite existir são lugares saturados de futuro. o paradoxo da ruína útil logo vira um projeto de revitalização que só ainda não calhou de acontecer. até o mais envelhecido esqueleto vira um osso irrelevante, algo a ser partido ao meio em busca de qualquer mísero resquício de tutano.
é sentimentalismo da minha parte, e o sentimentalismo, inútil como é, está fadado a ser engolido também.
porém, eu ainda gostaria que não fosse um crime tão hediondo por aqui algo não ter um propósito.
tá, metáforas de canibalismo à parte,
acho que dá pra tentar fazer que nem as outras newsletters que eu gosto e recomendar alguma coisa.
a recomendação da vez é a página da wikipedia sobre a vez que o governo da dinamarca matou 17 milhões de visões e isso virou um escândalo nacional porque eles simplesmente acabaram com a indústria de pele de visão dinamarquesa do dia pra noite
eu não vou explicar por que. eu não fazia ideia de que isso tinha acontecido até ontem de madrugada e descobrir isso tentando simplesmente achar a tradução correta de mink (que eu confundi com uma marta, mas eles também são meio que a mesma coisa) me fez sentir que eu estava ficando louco. então agora você vai ficar louco também
fica uma recomendação também do canal do Raul Juste Lores, um arquiteto que gosta de reclamar de como São Paulo tá uma merda e o planejamento urbano daqui, simbolicamente, tem uma forte tendência a “esquecer” que cidades são feitas pra que pessoas morem nelas.
é isso por hoje. eu ia em algum momento falar sobre o fato de que eu fiz uma desconhecida lacrimejar essa semana em uma conversa casual sobre a impotência pessoal perante a força sistêmica do capitalismo e me senti muito estranho com o ocorrido mas deixa pra lá
“porra mas não era pra newsletter ser de sexta-feira? segunda edição e já atrasou?” eu não dormi ainda. se VOCÊ acha que não é mais sexta isso é problema SEU
Que prazer descobrir que meu amigo é um cronista tão reflexivo e habilidoso ♡
Cai aqui aleatoriamente por recomendação da eu destruirei vocês E... como estudante de arquitetura, hater de são paulo e grande fã de metáforas com canibalismo Adorei demais essa crônica!