substância sem forma definida
deletar um texto incompleto e começar um novo é sempre mais fácil que fazer o esforço de chegar ao ponto final.
o processo é sempre esse. jogo tudo na página, esqueço por semanas, finjo pra mim que nem tentei escrever nada e começo de novo. mas o tema é o mesmo, o estilo é o mesmo, a coisa que precisa sair ainda é a mesma. tomou outra forma, adaptando-se a um novo recipiente. é o problema e a beleza da criatividade-maré: o quebrar das ondas é tão lindo quanto é inevitável.
há em mim um eu que não foi mais, que deixou de ser. um texto menos pedante chamaria de passado, de experiência, de trauma, de idade, mas eu não consigo deixar de ver como algo mais líquido; é um troço que está fadado a se transformar sem nunca mudar de verdade, meio-termo entre o concreto e o abstrato, nem sólido e nem desmanchado no ar.
eu não sei descrever toda a geografia do processo, mas o meu formato mudou. talvez exista um equivalente psicológico ao assoreamento, e é por isso que eu tenho estranhado tanto voltar a fazer algo que passei a maior parte da vida não fazendo:
não pensar no nível de um rio.
solvente universal
no dia que o mais novo apocalipse chegou, 24h depois de ficar tão perto do mesmo rio que quis ficar tão perto de mim, finalmente vi o Cara da Sunga.
testemunhei a mítica figura portoalegrense (literalmente um Cara que saiu só de Sunga tantas vezes que ganhou relevância cultural) andando por aí no mesmo dia em que, já sem ter certeza de quando seria seguro voltar pra casa, fui tentar me voluntariar no Centro Histórico — um dia antes do mesmo ficar debaixo d’água. talvez seja, de todos os outros eventos ocorridos durante o caos, o que eu menos consigo colocar em palavras. outras coisas, entretanto, não se safarão tão fácil.
as enchentes me tornaram refugiado climático, ainda que por definição relativamente ampla. por sorte, não dei vários azares: de morar uma quadra mais perto do rio, de ter menos noção de autopreservação, de ter amigos e familiares ainda mais vulneráveis, de ter cometido escolhas piores. foi especialmente estranho descobrir, depois de voltar, que a precaução de tirar preemptivamente o carro do estacionamento não foi exagero da minha parte. a marca da água ainda está na parede, na altura do meu pescoço. há marcas d’água na cidade inteira. se paro ao lado delas e me concentro, sinto meu corpo afundando.
quando o texto veio como desabafo, após três semanas enfurnado na casa dos sogros, era mais dramático. algo mais parecido com um protesto, um grito reverberando, ainda que eu não soubesse muito bem pra quem. agora, o privilégio de poder olhar para trás me faz perceber tudo sob um verniz de exagero. considero manter isso ou aquilo, se deveria italicizar ou sublinhar as partes de antes e as partes de agora para que você assista ao efeito da erosão criativa em tempo real. penso se não deveria ser mais um desses em que eu tento criar alguma metáfora bonita, amarradinha, fingir que eu escrevo querendo audiência. talvez ainda seja um grito, mas percebi agora que a origem está submersa.
e aí eu lembro que esse texto não é pra você. também não é pra mim. poderia ser para homenagear a boca de lobo que me ajudou a medir o nível de entupimento do sistema de esgoto, ou a comporta 3 inexplicavelmente arrancada dias antes do segundo pico da enchente, ou os sacos de areia postos sobre tampas de bueiros pela cidade que vazaram assim que a chuva voltou, mas também não é. não é crítica, não é crônica, não é manifesto.
o chute mais certeiro seria dizer que é uma dedicatória. uma reverência ao gráfico ao vivo do sistema nacional de hidrotelemetria, que fiquei atualizando de hora em hora por um mês inteiro. de certa forma, acho que deve ter sido a coisa mais próxima da minha vida de me dedicar a uma religião. e o difícil é entender que tanta gente ao meu redor fez, ao seu modo, exatamente a mesma coisa. entre um homem sempre pronto para um mergulho, uma calamidade, um líquido que compõe a maior parte do nosso corpo e algo em que eu penso de novo toda vez que chove. algo nos conecta. separa. mistura. dissolve.
vetor da vida
há uma crueldade incrustada em escrever sobre qualquer coisa. no texto, há inerentemente o ímpeto de poetizar, enfeitar, escrever bonito, e da mesma forma que alguns horrores devem ser esquecidos para seguir-se em frente, decorar certas partes da vida é tentar resistir a uma correnteza. arte, o luxo supremo da vida humana, e talvez o grande objetivo de se continuar vivo, é também a força que esmaga e oprime tudo aquilo que não tem o privilégio de se permitir aos luxos.
havia aqui no espaço que esse parágrafo ocupa uma enorme diatribe de ódio aos aproveitadores, aos cretinos, aos mentirosos que tanto se aproveitaram da situação, pontuada pela ideia de que o segundo dilúvio que recaiu sobre o Rio Grande do Sul foi o da crueldade.
mas não existe mais. há agora um sem-número de coisas que não existem mais, tão grande que é mais fácil não falar sobre. serão assim, agora, como as fotografias e móveis e roupas e arquivos e lugares e rotinas e futuros perdidos: algo do qual só é possível relatar como uma memória. antes, o texto era assim. agora, precisa ser de outro jeito. é o mesmo, mas nunca mais vai ser como poderia ter sido.
algumas plantas minhas morreram durante as semanas longe de casa na enchente. não foram levadas junto no êxodo temporário, apesar de serem poucas, por puro lapso de atenção. também não foi uma grande tragédia; até o presente momento na vida, sou péssimo em manter plantas vivas, esquecendo que os ambientes em que as coloco não lhes são naturais. erro em todo o espectro: ora deixo faltar água, ora acabo por afogá-las.
e ainda assim, elas insistem em nascer de novo, quer saibam ou não que a possibilidade da incompatibilidade entre nossas naturezas as mate novamente nunca será nula. a mesma água que corre em mim corre nelas. a mesma água que me hidrata é a que recai sobre minhas cidades, outrora como tormenta, agora como ácido.
a mesma água que me dá vida é a água que leva a vida embora.
dependência orgânica
compartilho pouco meu interesse pessoal por acidentes industriais. é algo que chama minha atenção pelo nível de complexidade da maioria das situações importantes: nada nunca se deve a um único fator no sistema. falando nos termos brutais dignos do capitalismo, todo acidente é um impacto indesejado e inadmissível na produtividade; do ponto de vista da fábrica em si, um acidente é tão implacável e previsível quanto uma doença.
há, nos acidentes, o sintoma mais óbvio da contraditória patologia que pauta as catástrofes dos nossos tempos: a monetofilia. é uma doença que, como muitas outras, começa devagar, ainda no campo da lógica. é óbvio que você deveria sempre comprar barato pra vender caro, e é óbvio que você deveria sempre cobrar o máximo que os outros aceitam pagar, pois no começo ainda não é sobre lucro, e sim sobre sobrevivência e outras desculpas. o dinheiro segue cursos parecidos com os de um rio, escavando e esculpindo a geografia de forma a sempre tomar, mesmo que à força, o caminho que oferece menos resistência… até que as águas salgadas e doces da física e metafísica se tornem indistinguíveis. é óbvio que você deveria enxugar o orçamento de manutenção daquela plataforma de petróleo. é óbvio que você deveria retificar o rio sem se preocupar com a área de várzea. é óbvio que ninguém vai se importar com uma meia dúzia de indígenas no caminho de uma hidrelétrica.
a mistura incoerente de políticas econômicas em que vivemos (seja no Brasil ou no mundo) deve muito à veiculação hídrica dessa doença. onde há água, há capital, seja na forma de agropecuária, de refrigerantes, de navegação, de resfriamento nuclear, de força motriz para moinhos e monjolos. água vira trigo nas margens do Nilo, vira arroz no Yangtze, vira algodão no Mississipi, vira transporte no Danúbio, vira energia no Paraná. nós não existimos sem ela em todos os sentidos; está nas nossas verduras tanto quanto está na mistura de nosso concreto, e está em nossos melhores dias na praia tanto quanto está em nossas enchentes. é parte de nós. é uma necessidade. é um vício.
água arrasta consigo o que você botar nela. não faz julgamentos. carrega em si a crueldade indiferente de tudo aquilo que é inconsciente, equalizando tanto o natural quanto o naturalizado. tudo entra nos ciclos, se embrenhando entre chuva, nascente, rio, lago, lençol freático, mar, acumulando, transportando, transmitindo, solvendo, oceano, oceano, oceano. tudo tende a fugir da porcentagem tão preciosa de água potável, tudo vira oceano oceano oceano oceano oceano oceano oceano.
e volta do mar.
e começa de novo.
e nós a acompanhamos com a diligência, devoção e desespero reservados apenas aos amamentados e aos abstinentes. o Huáng Hé muda de lugar século após século, e um continente inteiro se move para segui-lo.
dilúvio inexorável
há uma implacabilidade inerente nos padrões históricos que vemos como grandes ciclos, uma atração poseidônica, iemanjaica, tiamática a fazer com que tudo continue exatamente do jeito que sempre foi e sempre será. toda vitória perante a corrente aparenta ser temporária, pois há sempre a expectativa de que, no fim, a água leve tudo embora de novo. que o rio mude de curso. que a maré suba outra vez. que, na cronologia titânica dos oceanos, seja tudo questão de tempo até que as ondas nos arrastem de volta para onde viemos.
um dia desses, nutrindo o hábito de aproveitar as alucinações do algoritmo de propagandas do youtube durante a madrugada, recebi um vídeo documentando/relatando o terremoto e tsunami de 2011 no Japão. por nenhum motivo. consigo entender a lógica (o vídeo que vi imediatamente antes era sobre terremotos), mas não o propósito. não sei por que esse vídeo existiu enquanto propaganda. não havia nenhum canal, nenhuma ideologia, nenhum valor. só destruição espetacular.
era um vídeo longo. minha esposa dormiu, em algum momento, mas algo no vídeo me hipnotizou. no começo, eram só tremores, casas caindo. e aí veio a água invadindo os espaços urbanos, derrubando tudo o que via pela frente, preenchendo tudo. achei um tanto poético que fosse um vídeo que, com certeza, ao menos na dublagem, foi gerado artificialmente; o que é a IA, o spam, a criação industrial de conteúdo senão uma torrente infindável tentando ocupar cada buraco da nossa existência digital, não importa quão minúsculo seja?
o paralelo imediato foi óbvio demais para não ser traçado. passei mais de um mês pensando no Guaíba preenchendo os esgotos, saindo pelos ralos e bocas de lobo, consumindo os bares e casas e empresas e praças, expulsando pessoas, deixando sua marca em todas as paredes. toda a violência sofrida aqui e em todo o estado, ora lenta e implacável, ora rápida e avassaladora.
depois do primeiro dilúvio, seja qual for, resta sempre a dúvida: haverá um próximo? a possibilidade original, afinal, já se manifestou.
e a dúvida é cruel, pois é multifacetada. pode ser questão de tempo, ou de circunstância, ou de destino. pode ser pior do que da última vez, pode ser melhor do que da próxima vez. o preparo pode ser suficiente, ou todas as barreiras erguidas podem ser derrubadas como se nem existissem. a ansiedade, o pânico, o suor frio podem ser um foco e uma antecipação que arrancam à duras penas um pedaço de controle de uma situação incontrolável, ou um medo vazio pode se tornar um sacrifício vitalício da taquicardia engatilhada pelo som de uma tempestade.
o esqueleto da primeira arca naufragada nos assombra, um naufrágio sempre visível no litoral de nossas mentes. um dia, o incontrolável foi controlado. talvez um dia seja novamente, ou talvez nossos esforços sejam só mais um barco encalhado. e, pior de tudo, talvez o incontrolável nunca mais se importe com a gente. não que nossas pretensões de construir barquinhos sejam grande coisa perante o que sempre foi e sempre será.
oceano primordial
água é água.
é a origem da vida. é solvente universal. é necessidade básica, é matéria-prima e é motivo de briga. é um líquido versátil, insípido, inodoro, incolor, anfótero. é explosão se misturada com calor repentino em um tanque de metal, é descanso se misturada com calor planejado em uma sauna de madeira. é fonte de energia, é requisito indispensável para a agricultura. bem geladinha, é minha bebida favorita.
água é algo do qual sempre gostei. o único esporte que ainda me interessa voltar a praticar um dia é a natação, e hoje em dia, se penso em descanso, logo penso em um corpo d’água. água é paz. embaixo d’água, com tempo limitado pelo volume de meus pulmões, é um dos únicos lugares do mundo em que me sinto verdadeiramente em casa. salvo algumas das metáforas mais bonitas para algum dos futuros livros — são daquelas que vejo como pessoais demais para arrancar do peito sem nada em troca. porém, compartilho que é com os ouvidos tampados pela água, entre as reverberações distantes da civilização humana, que sinto que consigo finalmente ouvir o mundo.
água é natureza. se a pedra é do que somos feitos, se fogo é o que podemos fazer, se ar é o que nos desfaz, a água é o que nos contém. é tudo aquilo que é inescapável, e ainda assim, acolhedor. é cruel tanto quanto é gentil. é indiferente, é generosa. é estagnação, é correnteza. é destruição, é renascimento.
é tudo que não consegue deixar de ser o que é.
mudamos de endereço. a vigilância sanitária condenou o prédio antigo.
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um texto fascinante e impactante, eu venho acompanhado essa newsletter faz um tempo sabe deus por quê ou como, e sempre os textos são ótimos. mas nos últimos dois, esses relatos extremamente pessoais com certas divagações sobre a vida e o que acontece dentro e fora dela foram de deixar meus olhos levemente marejados...