pensar sobre o silêncio é uma atividade naturalmente paradoxal
sendo impossível imaginar algo que não existe, o silêncio, como vácuo que é, só pode ser imaginado enquanto a falta de um som. e como se pensa na falta de um elemento sem necessariamente pensar no objeto faltante?
um paradoxo, por si só, não é um problema. significa apenas uma condição onde é inevitável aceitar a qualidade transitória de uma certa realidade; só é possível, ao pensar sobre o silêncio, demarcar seus contornos por alguns breves momentos antes dos ouvidos começarem a zunir. é um ouroboros caçando a própria cauda - quando a alcança, já não está mais lá.
falar sobre o silêncio é impossível. pelo menos não sem eliminá-lo.
[como é que tem gente que escreve ouvindo música?]
a falta de som é um buraco
assim como a dúvida, a sombra, a inconsciência, o vácuo.
um buraco não é uma parte constituinte de nada. em uma superfície, a parte esburacada é uma não-superfície - uma falta, uma falha, um futuro. todo furo é algo a ser preenchido. um buraco é onde algo poderia estar, um abismo de puro potencial. o abismo é um substantivo aguardando sua transformação em nome.
entre todos os buracos, o que mais me fascina é a reticência. primeiro como conceito, depois como pontuação, ainda que sejam essencialmente indistinguíveis. todo texto é uma relação de figura-fundo: o conjunto de buracos de não-página criados pelas letras transforma-se em texto, e o conjunto de buracos de falta de sentido criados pelas palavras transforma-se em significado. a pontuação é um conjunto de buracos de falta de significados finalizados, e a partir disso delineiam-se começos e fins para esses significados. a aparição do ponto, da vírgula, do ponto e vírgula; cada um desses adiciona uma dimensão diferente ao plano dos significados.
e a pontuação resta mesmo depois que o texto se vai.
você sabe que a pontuação existe, do mesmo jeito que você sabe que existe itálico, e redondo, e negrito. passam a existir também, então, outras dimensões de significado: a de quando algo é usado de maneira errônea,
e a de quando algo deixa de estar onde deveria
a reticência é composta de matéria não-bariônica
e o ser humano e sua história são compostos de reticências.
a elipse é a forma em que o texto toma sua parte na recursividade universal, nunca sendo inexistência, mas sim a simbolização de tudo aquilo que é tão indetectável quanto inegável. humanos viveram e morreram desde que humanos vivem e morrem, e ainda assim, a maior parte de nossa centena de bilhão de existidos e existentes só pode ser representada por uma série de pontos corretamente espaçados.
não conseguiria dizer o nome de meus bisavós sem pesquisá-los, e mesmo os nomes completos de meus avós já me escapam. vivendo na megalópole, a maioria do que há ao meu redor são meras silhuetas de nomes, narrativas, emoções, espaços. o grande desafio de uma vida é insistentemente conquistar pequenas vitórias na luta contra a inexorabilidade do silêncio - uma luta que não é feita contra um oponente, mas contra a ideia de que a luta possa acabar.
e a elipse não pode parar de existir. mais do que meramente implacável, o silêncio é necessário. sem a pausa, só há barulho, e tanto só barulho quanto só silêncio são estados caóticos, sem sentido. quando tudo é quieto demais, o tempo se torna pegajoso, o navio do pensamento tenta ser remado em um rio seco; quando o barulho preenche tudo, os ponteiros somem do relógio, os significados não encontram espaços vazios para ocupar.
cada elemento tem seu espaço. tudo o que é suprimido, não dito, invisível, incompreensível precisa existir, pois livro algum pode ter zero páginas, mas também não é possível que tenha infinitas.
ainda assim, um paradoxo racionalizado ainda é um paradoxo. e dentro de um vazio, há espaços demais para o indesejado se esconder.
esse texto é sobre _______
sem um som que um ocupe, o volume de um silêncio só aumenta, e com isso, aumenta a magnitude de suas possibilidades. hoje, a resposta que você tanto espera não chega pois a pessoa teve um imprevisto; amanhã, a ausência contínua dá a entender que a pessoa não se importa; em questão de semanas, torna-se plausível presumir que a resposta nunca chegará, pois ou o remetente morreu, ou preferiria que você estivesse morto.
mas se o texto que não vem nunca fosse sinal de abandono, essa newsletter não existiria mais.
a lacuna é perigosa. manejá-la exige uma experiência difícil de obter, pois é uma experiência da mesma natureza do objeto estudado: vaga, esguia, em permanente mutação. as medidas do inexistente são incomensuráveis: quem é o historiador capaz da afirmação categórica de que o eco ensurdecedor de trezentas pessoas no passado distante não continha também trinta mil vozes mudas? como uma pessoa imersa em traumas de abandono confirma a arbitrariedade de que, dessa vez, o limite estabelecido por uma outra pessoa é justo e saudável? quem delineia um vazio passa a arriscar, para o resto da vida, ver o mesmo vazio redesenhado dentro dos contornos de vazios completamente diferentes.
enquanto inexistência, a lacuna é possibilidade; a pessoa com quem você não fala há anos, a regra social que você desconhece, a teoria que ainda não foi comprovada nem desprovada. podem haver faces entre as sombras, perigos logo atrás de uma porta fechada, assim como a carta jamais enviada nunca saberá se foi aguardada com grande expectativa ou nunca desejada. meus silêncios e meus desejos indefinidos são um mistério para mim tanto quanto imagino que sejam para quem esteja procurando a minha silhueta nas minhas pontuações.
escrevo textos que não dizem de fato sobre o que são, que me testam - quero arriscar os valores da estética do mistério, a aposta de encontrar um leitor que detecte os áxions entre minhas vírgulas, e neles possa ver tanto o texto real quanto um texto completamente diferente do visível? prefiro a vocalidade de confirmar a intenção original, imutável e real da metáfora dominante no extremo tédio da pobreza de interpretação, em palavras impassíveis de significados alternativos?
a lacuna é ambígua. há algo que deveria estar nela, o objeto que preenche com exatidão o espaço separado para sua existência; ao mesmo tempo, a confirmação desse algo é impossível enquanto a lacuna continua a existir.
o corpo material se cala para ser entendido; o corpo sem órgãos grita por silêncio.
e os dois são o mesmo corpo.
oi galera! demorou mas saiu. estive lidando com um esgotamento sociocriativo complexo, e também fiquei muito na dúvida do que escrever em seguida depois da última; como eu queria fazer algo um pouquinho mais sério do que o usual, nessa eterna luta pessoal entre fazer pouco caso e me importar demais, o texto acabou preso dentro das trincheiras do Libreoffice.
espero que não tenha sido críptico demais para entender; tem um significado real, é um texto sobre uma coisa específica que tem sido muito presente pra mim nas últimas semanas. análises do silêncio são algo muito importante pra mim, tanto pessoalmente quanto pela formação de historiador e a tentativa de ser criador.
gostaria de saber se deu pra sacar, se você que leu isso não achou que foi muito confuso, se esse texto também te deu algum insight.
mas se você não entender eu também adoraria saber. eu gosto de confundir.