não é de rir, mas se quiser pode - sandices #3
sobre o deboche enquanto vício comportamental
tenho assistido uma quantidade vergonhosa de House ultimamente
House é um fenômeno pra mim. House não é bom. House é uma coisa que está numa categoria própria de qualidade. é uma série que é assistida e reassistida por ser consistente, igual os outros grandes procedurais dos anos 2000. sempre acho engraçado quando House é lembrada pela lenda urbana de “ser a melhor adaptação moderna de Sherlock Holmes”, o que não é necessariamente mentira, mas é certamente meio exagerado
é inacreditável a nossa sorte coletiva dessa série ter acontecido no meio dos anos 2000, a época em que tudo era estranho (voltei nesse parágrafo depois de escrever pra falar que acabou de ter uma mençao ao Myspace). ninguém no mundo ocidental tinha personalidade ainda, a internet ainda não tinha terminado de ser inventada e memes ainda eram primariamente um conceito sociológico (quem foi o filho da puta que conseguiu transformar essa merda numa palavra corrente? era pra gente lembrar do Richard Dawkins só por causa daquele tweet maluco dele, não pelo currículo acadêmico).
House, enquanto personagem, tinha tudo pra ser A representação da masculinidade tóxica. não que ele seja, necessariamente. a série inteira retrata ele, aos poucos, surpreendentemente, contra todas as expectativas, crescendo enquanto pessoa, e ele nunca é um personagem desumano. mas ele tinha tudo pra ser o tipo de personagem que gente imbecil vê como O Foda. vejo com perfeição no olho da minha mente o gigantesco ator Huge Laurie como o Thobas Selmy de um universo paralelo
essa série envelheceu que nem água. não ficou nem melhor nem pior, só tá com um gosto estranho de ter ficado tanto tempo pegando sereno. tem momentos bons (acho bem único todo o drama com Huntington da 13), momentos péssimos (tenebroso de ruim o arco narrativo do policial vingativo), e, em geral, momentos consistentemente normais. e a qualidade específica que mais faz essa série uma candidata perfeita, perdida no tempo, pra ser idolatrada por gente com baixa educação emocional é a regra de que todo episódio, não importa o que esteja acontecendo, é saturado de deboche.
nada é levado a sério. House é, fundamentalmente, uma série de comédia - apesar do que dá a entender o pianinho mela-cueca que eles tocam de vez em quando pra audiência pensar ah é, essa é a cena de ficar emocionado. e é meio que uma comédia a qualquer custo, uma comédia de tudo o tempo todo. só nos últimos dez (ou vinte [ou trinta. vou ser sincero, já perdi a conta]), já teve enredo inventado só pra zoar obesidade, e nanismo, e autismo, e PTSD, e pessoas trans, e mais umas vinte coisas diferentes. enquanto eu estou escrevendo esse texto acabou de ter uma piada gratuita sobre o holocausto
mas tipo, como eu disse, não envelheceu nem pra melhor nem pra pior. House é diferente de algum South Park ou Pânico na TV ou coisa do tipo pois o mote central da coisa é que, apesar de toda a babaquice, toda a misantropia, todo o niilismo, a série ainda se importa. talvez a importância em si seja complexa - há discussões ainda relevantes em episódios como o que uma pessoa surda recebe um implante coclear à força ou no tratamento medicalista de pessoas interssexuais - mas ainda é uma série sobre salvar vidas. melhorar vidas. isso é o que faz House funcionar. a comédia sabe que está andando de mãos dadas com a tragédia, e da mesma maneira que toda piada acontece quando precisa acontecer, toda tragédia também acontece quando precisa acontecer. o deboche é todo acompanhado de um apesar: por mais que o impulso de fazer pouco caso seja constante, ainda há coisas mais importantes nessa vida.
acho que algo se perdeu nos últimos dez ou vinte anos, pois tenho visto esse sentimento como algo cada vez mais raro.
a comédia e o taoísmo
não me peça pra explicar o meu conceito de taoísmo, pois eu não saberia por onde começar (o que deve significar que eu sou bom em alguma coisa, já que o ponto do negócio é ser indescritível). mas eu tenho ultimamente visto o mundo como divisível apenas entre duas coisas: beijo e carne moída comédia e tragédia.
além da tendência de ricos tentarem escravizar pobres e em às vezes ter conceitos terríveis de passar pra frente como observações científicas versões glorificadas de fulano me disse que beltrano ouviu que ciclano escutou algo mais ou menos assim (eu ainda não superei que a ‘história de origem’ da descoberta do vidro que até hoje programas de história repassam é só uma FOFOCA que Plínio o Velho escutou e botou num livro), os gregos ainda influenciam muito a gente também nos conceitos teatrais.
seria muito perenialista da minha parte dizer a relação entre a comédia e a tragédia gregas em si são taoístas, mas eu as vejo com um fluxo bem similar. da mesma maneira que quanto mais o yin se torna yin, mais ele cria o momento em que se torna yang, e vice-versa, quanto mais a comédia se torna comédia, mais ela cria o momento em que se torna tragédia, e vice-versa.
dá pra dar muitos exemplos disso, de muitos ângulos diferentes, mas eu estou percebendo agora que estou tentando escrever esse texto pela sexta vez que isso vai deixar esse texto chato. então você pensa nisso aí na sua casa.
eu vejo como algo bem bonito esse fluxo. considero que ele é uma das principais fontes tanto de conflito quanto de reconciliação no mundo inteiro, pois acredito que a maioria das crises humanas são só questões muito simples de que alguém acredita em alguma coisa e outra pessoa acredita que a primeira pessoa é uma completa imbecil.
tenho pensado bastante ultimamente sobre como eu me identifico de várias maneiras, e uma delas é politicamente. nos últimos dez anos, virou toda uma questão de comédia e tragédia dizer sou isso ou sou aquilo, pois a gente vive na era da internet, e a internet nada mais é do que um experimento científico pra tentar transformar o mundo inteiro no Brasil. ou pelo menos em um episódio de House. acreditar em coisas requer que você seja genuíno e vulnerável, então em um mundo desigual com exposição exagerada entre estranhos sempre vai surgir alguém pra aproveitar essa brecha pra te ferir, então depois de feridos nós nos sentimos vingativos e descontamos na vulnerabilidade de outra pessoa, e dessa forma cria-se uma espiral de negatividade onde acreditar em alguma coisa passa a ser cringe. seja irônico. faça memes de tudo. zoe o que você mesmo acredita ao ponto de não acreditar mais. use seus aliados como motivo de chacota do mesmo jeito que os seus inimigos. tanto faz. enquanto estamos ferindo outras pessoas, não precisamos pensar nos nossos próprios ferimentos.
mesmo enquanto eu escrevo isso, penso nisso. é uma posição genuína da minha parte achar que o mundo está um pouco debochado demais, e a coisa que realmente o brasileiro deveria ser estudado sobre é essa tendência a não só não ter limites para o humor (que é inevitável que não tenha limites, mesmo) como se impedir de parar de fazer piadas. é uma posição tão genuína que eu preciso fazer piadas sobre isso, olhar pro texto e pensar nossa, tá bem aquela piada de que meme de esquerdista tem 8 parágrafos, né
mas ao mesmo tempo, eu penso no ciclo. eu vejo como uma tragédia que tanta comédia exista, então é natural que alguém vá pegar a minha tragédia e rir dela, pois na figura do comediante sempre existe um pouquinho de tudo de pior, do chargista ao pantomimo ao bobo da corte ao standupeiro, e quanto mais forte é o cheiro de tragédia, mais difícil é segurar o riso. você sabe que não deveria rir.
você não quer rir. você tem tanta vontade de não rir que rir é a única coisa em que você consegue pensar, ao ponto que seu cérebro começa a ficar ansioso. por que você não está rindo se está pensando tanto em rir? não faz sentido se sentir tão intenso sobre rir de alguma coisa. você está no lugar errado. na hora errada. no contexto errado. acidente de carro, atentado terrorista, doença terminal. é tão trágico que é completamente absurdo pensar em rir.
e aí você ri sem parar. ri até saírem lágrimas dos seus olhos.
alguém vai rir disso. vai ler tudo isso e pensar que eu falo demais, que isso não é coeso, que eu não tenho um ponto com tudo isso.
então por que eu deveria me importar de escrever isso?
desistir é a forma mais simples de lidar com um problema
muitos anos atrás, eu aprendi a desistir de familiares. um por vez, cada um por um motivo diferente. um deles foi mais exemplar, pois a minha desistência precisou encarar o fato de que ele morreu. o problema de me importar foi enterrado junto do cadáver.
eu lembro da cara do meu tio no velório. a sala era horrorosa, um quartinho num cemitério público onde é impossível esquecer que você está basicamente numa repartição do governo que presta um serviço essencial com menos que o mínimo de orçamento imaginável. ou seja, até que era bem ajeitadinha.
de certa forma, eu ajudei a organizar o velório. fui atrás de acordar os funerários de Itanhaém de madrugada pra orçar não só a preparação dele e o caixão como um valor justo pra transferência dele pra São Paulo (e porra, eu posso não ter de fato dado início na carreira de tanatopraxista, mas aprendi o suficiente pra saber quando estão te cobrando demais pra esvaziar e preencher de novo um corpo). o serviço foi bem feito. daqueles que você olha pro morto depois e, bizarramente, ele ainda parece mais ou menos vivo.
eu não via o meu tio há anos. acabei encumbido da tarefa pois, naturalmente, nenhum dos irmãos dele estava em condições (mentais, geográficas ou financeiras) de fazê-lo, e entre os filhos e ex-mulheres que ele deixou pra trás, nenhum se importava o suficiente. e ainda assim, ele estava irreconhecível. foi como ir no velório de um completo estranho onde por algum motivo vários dos meus familiares também apareceram.
eu não senti vontade de chorar em nenhum momento. fiquei pensando por muito tempo durante o processo funerário sobre pessoas que sentem vontade de rir em funerais, e como eu já fiz uma ou outra piada para aliviar a situação em outros momentos, mas não me lembro de já ter rido de fato. é uma coisa curiosa. consigo entender perfeitamente por que esse mito da pessoa que ri em funerais existe - é um momento tão absurdamente triste que parece que a gente vai ficar preso nele pra sempre. morte é algo tão fora do nosso controle, tão sem resposta, um não-final tão potente que é algo que precisa ser escrachado. alguma flor precisa nascer, ou reviramos a terra pra nada.
a vontade que me veio foi o alívio, na verdade. eu odiava esse tio. passei anos querendo que ele morresse e parasse de ser um problema. e aí ele morreu, e a tragédia acabou, e a comédia parou de ter motivo pra existir.
existe algo de entorpecente em funerais. talvez a cadaverina seja uma substância psicodélica. quando acontecem, nada parece de verdade, sempre tão removido de uma rotina real, mesmo quando há total expectativa, que é impossível escolher entre levar a sério e não levar a sério. é mais fácil se remover da situação, navegar entre sentimentos difíceis como se não estivessem exatamente acontecendo com você ou com as pessoas próximas, deixar acabar logo e aí esquecer.
não é à toa que as expressões que sempre me marcam mais em funerais são as dos coveiros - homens cuja profissão é se equilibrar no limbo entre se importar e não dar a mínima. eu os invejo. desde a vez que eu mesmo cavei uma cova, acho que entendi o que significava esse equilíbrio.
escrever tem sido um processo difícil, ultimamente. as palavras às vezes saem muito rápido, de um jeito que eu nem consigo controlar, e às vezes entalam na minha garganta. me levo a sério demais, me levo a sério de menos, e fico travado no paradoxo de que eu preciso fazer menos piadas pra encarar o mundo de maneira madura, mas a própria ideia de maturidade é uma gigantesca chacota.
me sinto um pouco mais tranquilo de saber que isso está acontecendo, ter ciência desse fluxo conflituoso rodando dentro de mim. me sinto um pouco mais preocupado de ver o resto do mundo e tentar arranjar maneiras de dizer que outras pessoas também deveriam pensar mais nisso. me sinto autoconsciente de fazer muitas frases contrastantes, e de como pensar nesses contrastes sempre me faz pensar em qual piada eu vou fazer no final do parágrafo pra aliviar um pouco a seriedade, pois se as pessoas estão fazendo o esforço de ler essa bobajada de tema livre elas merecem dar alguma risadinha. me sinto ultrajado. você acha que eu sou algum tipo de palhaço? foda-se, esse texto não tem mais final. eu quero falar de como House é a série mais anos 2000 já escrita e sobre como funerais são um lembrete de que temos que nos manter com os pés no chão e saber a hora de parar de querer fazer piada de tudo e você quer rir de mim? tá tão viciado em piada que tá só esperando o momento que eu vou debochar de alguma coisa? você que vá ver um vídeo do porta dos fundos. acabou o texto
ou pode ver esse vídeo também. que eu não acredito que é do ano passado. House acabou em 2012
cristo na CRUZ finalmente esse texto saiu
quarta versão já. estou chegando à conclusão de que newsletters semanais talvez não sejam a coisa ideal pra mim. vamos ver! também gosto da ideia de que o negócio saia quando tiver que sair, mas porra, eu acabei de escrever ali em cima como algo negativo que desistir é o caminho mais fácil, não é? não quero desapontar meu eu de dez minutos atrás
não é sexta-feira, mas sábado também é sexta-feira. foi uma semana meio complicada, pois estou cada vez mais próximo de um diagnóstico neuropsicológico, e cada vez com mais certeza de que eu estou no espectro autista, o que me faz pensar sobre meus futuros planos de estacionamento, e com várias possibilidades chegando cada vez mais perto sobre a ideia de eu entrar ou não pra um programa de mestrado, o que me deixa bem ansioso e ficar ansioso faz meu cérebro ficar cheio de massinha
e aí galera. vocês estão gostando? vocês gostariam de algo um pouco mais temático, menos zoneado, ou o gostoso é a zona mesmo? vocês estão aí? se você leu essa porra toda, comenta aí alguma coisa. pelo amor de deus. eu não quero estar sozinho com as vozes
recomendações
a única recomendação da semana é a única que eu posso fazer pois é praticamente a única coisa que eu fiz a semana inteira. Hitman 3 lançou recentemente a atualização com o modo Freelancer, basicamente transformando o jogo num roguelike, e eu não tava dando nada por isso pois parecia uma puta de uma ideiazinha imbecil pra estender o conteúdo do jogo, mas paguei a língua. tô pedrinha nessa porra, tá muito bom
e você, jogou ou viu alguma coisa boa essa semana? estou aceitando recomendações de livros esquisitos e filmes de terror. compartilha aí! e até a próxima semana (ou próxima quinzena. descubra)
Comentando aqui pra marcar presença de ter lido o texto todo. Gosto muito da falta de formato, me lembra um grande amigo meu que mandava uns textões assim pra mim no zap de madrugada, hoje em dia isso acontece raramente, acho que ele achou grande conforto nos 3 gatos que adotou. Enfim, isso não tem muito a ver com nada, mas só dizendo que gosto dos textos!! Boa sorte aí nas paradas
oie, acabei de ler! na minha adolescência principalmente eu tinha o impulso de tentar rir de absolutamente tudo e hoje vejo como o deboche era medo de me mostrar vulnerável e mostrar que me importo com o mundo pegando fogo. até hoje é meio difícil demonstrar isso porque tenho medo de me importar tanto que não consiga sentir nada além de desespero porque é tanta tragédia, então é bom que a comédia exista. é sempre um limbo mesmo, como isso de não saber o quanto se levar a sério. eu comecei a minha newsletter com essa angústia, escrevi a minha segunda postagem ontem me sentindo meio perdida sobre o motivo de eu abrir a boca e o que exatamente eu quero falar sobre e acabei falando sobre isso. ficou com 15 minutos, acho que tenho que aprender a falar menos. mas você eu quero que fale ainda mais, adorei esse formato! muito bom ler esse texto depois de ter passado tanto tempo me fagocitando