não é carta de suicídio, é só coisa de artista. relaxa.
minha gata morreu.
morreu de uma dessas várias coisas que gatos morrem. morreu de ter 12 anos, morreu de ser uma gata persa, morreu de cansar de viver, morreu de repente, e morreu longe de mim, comigo em outra cidade, longe da minha casa.
faz tempo que não vivo um luto, mas a sensação nunca fica diferente. nem mais fácil, nem mais difícil: todo luto é a mesma progressão emocional caótica. vejo o luto como um colapso emocional-existencial, uma crise de presente, onde você se vê obrigado a aceitar que o passado não importa e o futuro não existe, e tudo que há é esse sentimento maldoso, indigesto, de seguir uma rotina onde há algo faltando.
uma morte é um buraco aberto no mundo. é uma mudança forçada de linhas do tempo, e eu agora estou em uma onde não há mais nenhuma possibilidade de eu ir pegar azeitonas na geladeira duas da manhã e trombar com minha gata com a cara toda molhada de água da pia, um indo e o outro voltando, cada um cometendo seu crime particular.
Frida foi Frida por ter sido criada em uma casa de hispânicos (argentinos, ou mexicanos, ou espanhóis, não me lembro), antes de vir para uma casa de brasileiros logo no apartamento ao lado e de seus criadores anteriores sumirem no mundo junto da mãe e do resto da ninhada. sempre foi cabeçuda, em mais de um sentido, primeiro por ser geniosa, resmungona, não gostar muito de gente (mas também nunca ficar muito longe) e segundo por simplesmente ter um cabeção mesmo. nunca foi esclarecido se o nome teve ou não relação com a pintora. o nome do meio (pois é muito engraçada a ideia de um gato ter nome do meio) era o mesmo que o da minha mãe, e o sobrenome nunca foi totalmente decidido, já que ela resolveu vir parar numa família com três sobrenomes simultâneos.
essa gata viu muita coisa mudar, e é impossível pensar nela, agora, sem pensar em quem eu era quando ela chegou - faculdade recém-iniciada, mudança recém-terminada, família recém-alterada. amigos, namoros, trabalhos, ideias, problemas, viagens, eventos, tanta coisa veio e foi - e a Frida continuou a mesma.
mais ou menos a mesma. em um certo ponto da vida, ela finalmente parou de passar as madrugadas gritando. nunca foi castrada, por algum motivo. passou a maior parte da vida sendo meio chata, esquisita, sempre parecendo que a gente tava enchendo um pouco o saco dela.
a morte dela tem sido simbólica. eu me preparei para o baque real de voltar para casa e descobrir que estou mesmo vivendo em um mundo onde não há mais gata Frida, com seus ronronados, seu pelo escovado, suas unhas sempre precisando de corte, suas manias, seus sinais. me preparei para voltar e pensar em como a falta de redes do apartamento, algo fora do meu controle que sempre me incomodou, impediu por 12 anos que as janelas fossem mantidas abertas em dias quentes e manteve constantes os meus sonhos sobre vidas caindo de sacadas - coincidentemente, o motivo de um dos meus últimos lutos.
me preparei para pensar em como eu passei 12 anos religiosamente levantando da mesa de jantar no meio da refeição para checar se fechei a janela do quarto, já que a Frida só gostava de vir explorar meu quarto exatamente dez minutos depois da janta começar. me preparei para pensar em como seria questão de tempo até que a permanência das marcas cotidianas dos 12 anos dela na casa - caixa de areia, pote de água, cama, brinquedos, comidinhas, os braços dos sofás de couro completamente estropiados - deixassem de fazer sentido.
e aí eu cheguei, e ela já não estava mais em nenhum lugar da casa.
toda vez que eu volto para cá eu morro um pouco. voltar para essa vida, para São Paulo, mais uma vez me desespera - e se há todo motivo para que o desespero seja sobre a morte, sou surpreendido mais uma vez em ver que o desespero real é sobre a vida. a crise não vem do luto, mas de entender que o passado é um acúmulo e o futuro é uma ausência. cada segundo é uma escolha cercada por um infinito de não-escolhas. toda vez que embarco naquele avião, deixo para trás um pedaço de mim em stasis, sobre o qual o pedaço em movimento não tem opção senão fantasiar que vai estar tudo igualzinho quando eu voltar. e aí não fica igual, pois agora minha gata é só um punhadinho de cinzas.
a morte é uma passagem, e é um descanso, e é uma lição, e é uma pilha de metáforas que dá pra listar por uma semana inteira. quando algo ou alguém morre, a tendência é tentar usar isso pra alguma coisa, ter alguma mudança de paradigma. memento mori - lembre-se de que você vai passar muito tempo da vida dando importância demais para frases em latim.
morte, além de metáfora, é falta de sentido. como assim a vida acaba? e acontece o quê depois?
eu demorei pra terminar de escrever isso. comecei o texto um ou dois dias depois de saber da notícia, ainda longe, querendo arrancar algo do peito, transformar essa tristeza em alguma outra coisa. queria ver algum sentido, analisar um luto para ver se sai disso alguma coisa útil, seja ela arte, pensamento, movimento, seja ela pra mim ou pra outra pessoa. acabei só terminando de escrever agora, dias depois de estar de volta em uma casa onde eu sei que não vou mais ver um animalzinho meio estranho descendo e subindo as escadas, e onde eu não vou mais passar pela experiência de tentar jantar enquanto uma criatura peluda tenta atravessar a mesa passando diretamente por cima da minha comida, pois nunca recebeu incentivo o suficiente para deixar de subir na mesa - e se recebeu, ignorou sumariamente.
admito que parte desse atraso é sentir que minha criatividade não tem mais sido a mesma. algo em mim perdeu o brilho, e isso já vem de antes dessa morte, como se eu vivesse algum luto por mim mesmo. estou tentando reencontrar essa vontade de criar algo, de permitir que minha vida exista do jeito que sempre quis existir com outras vidas - mesmo que, no fundo, eu saiba que o único motivo para viver é para que um dia a morte chegue.
minha gata morreu, e um pedaço de mim morreu com ela. virou cinzas que um dia serão espalhadas ou perdidas ao vento; virou memória que um dia, inevitavelmente, será esquecida.
mas se é na vida que a morte existe, é na morte que a vida é criada.
Frida virou história, e essa história eu fico feliz de poder contar.
Après la vie, mort. Après la mort, la vie de nouveau.
Outra Olivia aparecendo aqui pra dizer que pegou fundo e que agradece por ter compartilhado esse momento.
Esse pegou fundo aqui.
Amo vc