sonhei com você hoje, ou a teoria e prática da fabricação de desejos - sandices #9
sobre hipnossemiótica, metalurgia emocional, egometria e outras ciências paradoxais
autohistoriografia
durante os anos da faculdade, uma verdade máxima se instaurou em mim: o grande dilema do historiador é não poder se ver como parte da História.
delimitar História é algo enigmático, afinal; é algo que nunca deixa de existir, e por mais que alguns insistam pelo contrário, nunca acaba. o que ocorre hoje vira registro de diário amanhã, fotografia revelada semana que vem, angústia no mês que vem, memória depois de dez anos. há a perspectiva estranha e contraditória, ao botar no papel palavras que falam sobre o que já aconteceu, de tentar pavimentar uma estrada sem saber até onde o asfalto deveria ir. anacronismo, um dos conceitos centrais da graduação, trata essencialmente de lembrar que olhar para o passado sempre traz o risco de se deixar levar pelo futuro. você está aqui agora, mas você não sabe onde mais você poderia ter estado. e nunca vai saber.
e você pode tentar subverter isso. de propósito, até. pode olhar para as fotos, pode se ver nelas, pode olhar nos seus próprios olhos, pode dormir e acordar pensando nisso, pode delirar, pode enxergar tudo do pior jeito imaginável nos registros documentais e arqueológicos, pode ouvir errado todas as recontagens, pode interpretar a metodologia do avesso, pode sonhar acordado com o possível e o impossível. você pode tentar todas as formas possíveis de fazer todos os passados e futuros que não aconteceram passarem a existir, e você ainda não vai ser parte da História.
você vai ser você.
antropoestratigrafia
nas cada vez menos raras ocasiões em que me deparo com um sonho, percebo que ele é um registro arqueológico de mim. vejo entre as várias camadas representadas uma junção de fatores bem típica do que resulta nas conclusões clássicas e vagas de propósitos ritualísticos, a explicação que sempre entendi, do alto da minha ignorância, como não fazemos a menor ideia do significado disso. tudo que vai ao chão, porém, vai por um motivo.
lembro de estudar, em algum momento da faculdade, argumentos de que arqueologia deveria levar mais em consideração certas possibilidades menos palatáveis para a existência de registros arqueológicos. uma casa abandonada, um baú enterrado, uma espada em uma tumba, uma estátua faltando um pedaço merecem uma contraposição com a realidade de que lugares como o Pueblo de Taos não continuam sendo habitados só por birra. dizendo de outra forma: há sempre a possibilidade de que, quando encontramos algo que foi esquecido pela História, é importante lembrar por que esquecemos de algo. um guerreiro não é enterrado com seu cavalo apenas como sinal de grande honra, mas também como sinal de que quem o enterrou não estava precisando desesperadamente de mais um cavalo. o que hoje consideramos digno de um museu pode ter sido, no passado, considerado digno de um aterro. ou no mínimo daquela caixa em que você guarda todos os cabos inúteis que você nem sabe mais de quais eletrônicos eram.
para uma vida criar camadas, é necessário esquecer de várias coisas que a formam. e eu sinto que, desde que me conheço por gente, tudo o que faço é esquecer. lembro tudo de longe, como se tivesse ocorrido com outra pessoa.
quando faço um recorte vertical de quem eu sou, tudo o que posso dizer sobre os estratos da minha história são inferências distantes, incertas, desconectadas de outros possíveis registros. já perdi incontáveis fotos, cartas, conversas, registros, arquivos digitais, memórias. toda vez que preciso me lembrar de algo da minha adolescência, é necessário fazer um cálculo de paralaxe a partir de todas as outras coisas que eu tenho a impressão de que talvez tenham acontecido na mesma época. mas todos os elementos ainda estão lá, compactados entre seus respectivos passados e futuros.
pensar sobre como eu vim a ser é tão complexo, do ponto de vista de quem não consegue se ver de fora, como pensar sobre como seria fazer parte de qualquer civilização, incluindo a minha. em 7 de março de 1876, Graham Bell inventa o telefone, em algum momento perto de 2010 eu levo um esporro dos meus pais por ter feito uma ligação interurbana de 80 reais com a minha webnamorada, e pensar sobre a ligação entre esses dois fatos em qualquer nível além do superficial é enlouquecedor. tudo que já existiu antes de mim informa a pessoa que eu sou hoje e que eu serei amanhã, e isso inclui tanto o que eu sei quanto o que eu não sei. inclui o que eu mantenho comigo e também o que eu descarto. inclui todas as minhas interações com o mundo, quer a acepção específica dessas interações seja recíproca ou não.
em uma camada bem mais recente, superficial, tive uma conversa sobre o uso corrente de diários. lembrei mais uma vez de como nunca tive um, nem mesmo considerando as quase duas décadas de uso assíduo de redes sociais que registraram pelo menos uns dois quintos de todos os meus pensamentos. pensei em como isso já foi recomendado como algo que poderia ser útil para a minha saúde mental, e em quanto esforço eu já fiz em ignorar essa ideia.
o ano é 2016, ou 2017, e minha missão em um trabalho de faculdade é apontar as insuficiências de uma tese de mestrado de uma pessoa muito, muito mais estudada que eu jamais considerei tentar ser. o ano é algum dos vários entre o final do século XVI e começo do XVII, e alguém em Araçoiaba, na margem de um rio, onde havia uma pequena fábrica de ferro, esquece dos cacos de uma louça portuguesa pela última vez antes do abandono total dos restos mortais de um indício primordial da implementação de metalurgia no Brasil Colônia. entre outros mil argumentos muito mais relevantes, aponto que não foi dada atenção suficiente para todos os possíveis significados de uma pilha de cacos de cerâmica esquecidos pelo tempo.
viver, às vezes, me parece um tanto com um trabalho de arquivologia; e é doloroso pensar no quanto que catalogar em detalhes cada caquinho de cerâmica é um serviço de corno. e que, ainda assim, é necessário. vão ser esses mesmos caquinhos que meu eu futuro ainda vai descobrir que compõem o mosaico enterrado junto das minhas fundações.
hipnossemiótica
entre a Memória e a História, jaz o território de tudo o que é semifictício, nem exatamente narrativa, nem exatamente evento. é o campo dos mitos, dos conhecimentos populares, da criatividade, de tudo nesse mundo que já foi contado pela metade. é um Império silencioso, reservado e imortal, que absorve tudo que resolve entrar nele mesmo após o aviso derradeiro: por bem ou por mal, tudo que não deveria estar aqui um dia sairá. é onde habitam os sonhos.
meus sonhos desafiam minhas classificações pessoais. não são interessantes, e ainda assim alguns conseguem passar meses, anos a fio na minha cabeça. esqueço da maioria assim que acordo, mas ainda sinto seus efeitos. são a transcrição mental mais adequada de todas as partículas da física que ainda não descobrimos como enxergar, e eu sei que estão lá mesmo quando não consigo ver.
há uma noção popular de que sonhos possuem significado. seja para jogar no bicho, para predizer uma morte, para confirmar uma vontade, todo sonho seria uma ostra da qual se pode extrair, com força bruta o suficiente, uma pérola de sentido. você sonhou com isso por um motivo. todo sonho é, por sua natureza, talvez a experiência humana mais individual possível; não bastando ser impossível habitar a cabeça de outra pessoa, a ideia de compreender um delírio alheio como se fosse seu beira o que se esperaria da onisciência.
tentar derivar significado do sonho por trás desse texto exige um afastamento. é um sonho longo, elaborado, com começo, meio e fim. é um sonho sobre a pessoa que eu sou, e quem eu seria se fosse outra pessoa. é um sonho em que encontro minha criança interior e descubro que hoje já é uma adulta. é um sonho que não adiantaria de nada ser compartilhado, pois os instrumentos para quantificá-lo de formas úteis para outras pessoas ainda não foram alucinados. é um sonho sobre o que eu quero, sobre o que eu deixo de querer, sobre o que eu me obrigo a deixar de querer.
toda vez que visito um museu, vejo nele uma coleção de sonhos. penso que, se eu fechasse os olhos do jeito certo, talvez entoasse as palavras corretas, alguma estátua ou pintura ou resquício de tapeçaria ganharia vida e me diria tudo que pode sobre o que é. como o mármore se sente ao ganhar forma? o que o metal dobrado de uma instalação ou arma obsoleta poderia dizer sobre quem o trouxe ao mundo? um sonho é uma extensão de quem o sonhou, ou é uma coisa com vida própria? todos os dias, acordo com um leve medo de que minha hipótese da telepatologia se mostre real, e que sonhos sejam capazes de trafegar para outras cabeças, contaminando cada mente em que passam com um rol de símbolos impenetráveis, duplamente separados de todas as chaves que poderiam resolver sua decodificação.
por um lado, faz total sentido que sonhos não façam sentido nenhum. se fizessem, não teria motivo pra acontecerem durante o sono, quando o cérebro não está funcionando pra nenhuma das outras coisas que exigimos dele. é reconfortante, para muitos casos, pensar que são uma conjunção aleatória de elementos aos quais imputamos sentido, e você sonhar que está se casando com o Donald Trump e descobrindo ao vivo e a cores que ele também bronzeia a piroca de laranja não significa nada real. para muitos outros casos, entretanto, a perspectiva de que sonhar em reencontrar uma amizade perdida há anos é só um pensamento aleatório pode quebrar um pedaço do seu coração que você nem sabia que estava intacto.
a característica principal de um sonho, portanto, é sua ambiguidade. eu sonho com você e não sei o que isso quer dizer, e se deveria dizer alguma coisa; você sonha comigo, e eu não sei se quero saber o que poderia significar. depois que algo se dá por compreendido, torna-se extremamente difícil admitir outra possibilidade.
e quem é louco de arriscar entender de primeira uma ideia que nunca imaginou antes?
metalurgia emocional
é do centro do coração que sai a matéria-prima das ligas mais fortes conhecidas pela humanidade, sejam elas as que usamos para ferir, para amar ou para desejar, em ordem crescente de potencial destrutivo.
desejos, segundo meus experimentos, tem um formato quase perfeitamente arredondado, um aspecto metálico, e uma densidade que engana bastante tanto à primeira vista quanto à segunda, ora com o peso catastrófico de um arrependimento, ora com a leveza descomprometida da inconsequência. são facilmente confundidos com drágeas de morango desidratado e funcionam bem como munição para escopetas.
escrever tudo isso quebra meu coração de uma forma que eu não sei bem como explicar, e se soubesse, ainda não explicaria. falar de tudo isso exige tanta vulnerabilidade que não consigo falar diretamente; antes, preciso derreter tudo e transformar em alguma liga com maior resistência ou condutividade. o metal original some, dando espaço a algo que eu considero melhor, mais útil, ignorando o buraco no peito de onde tive que escavar o minério.
há uma violência natural em praticar qualquer ato de transformação emocional. é necessário desprezar a existência do minério em seu estado original, decompô-lo em uma série de quantificadores e qualificadores que o tornem útil para fazer alguma outra coisa. em seguida, qualquer pureza ou intenção original da emoção precisa ser moldada, retorcida, dobrada e retificada até que não se assemelhe em quase nada ao seu formato inicial. não há, no momento da composição de uma música, nenhum resquício da tristeza que a originou em sua forma bruta. raiva impotente é um pleonasmo; quando alguma ação de fato se executa, a raiva deixa de existir, transformada em vingança, em dominação, em descontrole.
a prática da metalurgia emocional, entretanto, não cria por excelência nada mais elevado, nada melhor. só diferente. fundido. um material que se transforma em outro material, sem nunca deixar de ser nem um e nem outro, fazendo com que o mesmo aço que compõe tanto arados quanto espadas se assemelhe ao mesmo amor que compõe tanto vontade quanto arrependimento.
é desse metal que derivamos todo o resto, incluindo os tantos outros metais dos quais derivamos a humanidade: o ouro da alquimia, a prata do colonialismo, o cobre das estátuas equestres. cometemos a violência de materializar nosso mundo antes, e só pensamos em corrigir os danos depois. a cronologia em das suas espadas forjarão relhas de arado é bem específica.
sismologia social
é uma questão de momentos. a cronologia das ações não respeita nossa percepção de tempo, e muito menos a de História. o único golpe de uma espada pode mudar tudo de um segundo ao outro, assim como um único faux pas difícil de explicar, uma decisão errada ao criar um filho, um breve momento de descontrole durante uma festa da firma. podemos colocar medidores no chão e analisar padrões, mas não há muito que se salve quando as placas sociotectônicas decidem se mover.
todo mundo é um mundo, e no meio de cada mundo, há lava: o caldo em que tudo se derrete, em um grande estado de fluxo coletivo mais potente do que qualquer indivíduo específico. os Minoanos não puderam, fosse com labirintos ou bronze, nem pensar em resistir quando Tera explodiu sob seus pés. e não é essa a mesma sensação de todas as outras tragédias interpessoais? o terremoto de um divórcio, o tsunami que acompanha uma morte inesperada, as cordilheiras e cânions que se formam entre grupos inteiros após o testemunho de uma diferença irreconciliável?
eu já tive meus terremotos, e já observei os de outros. sinto que muito do que faço recentemente é tentar prever movimentos sísmicos, entender quem está pensando o quê, para qual lado correr. penso muito sobre sair correndo, chegando até a me pegar de surpresa; talvez não seja tanto uma questão psicológica quanto fisiológica. pombos sabem navegar muito bem por longas distâncias, ostras são extremamente sensíveis a poluição. talvez tenha algo em mim que sente os microtremores, percebe as mudanças na pressão do ar logo antes de um círculo social implodir por uma última bobagem que fez transbordar a barragem de rancores.
talvez seja retroativo, entretanto. previsões do futuro tendem a ser. dizer que você sabia que ia acontecer depois que aconteceu é muito mais fácil do que saber. dizer que vai acontecer é, afinal, uma forma de alterar o futuro. seu namorado é um bosta ou todo mundo te acha um pé no saco ou você acha que ninguém te quer por perto porque você afastou todo mundo são frases que não saem da cabeça de quem precisa dizê-las, mas podem nunca sair da boca: são poucas as pessoas que, de consciência limpa e sã, escolhem criar catástrofes.
de certa forma, é uma pena. se fosse uma prática mais recorrente, mais compreendida e controlável, poderia ser mais simples se preparar para quando o chão cede sob os seus pés. ou, no mínimo, menos doloroso se escavar dos escombros depois que tudo acaba.
o desastre costuma convidar o pensamento de que algo poderia ter sido feito para evitá-lo, o que é uma forma engraçada de pensar, beirando o contraprodutivo. sinto que sou uma pessoa que lida bem com crises, com o inesperado, mas só sinto que posso ser assim por aceitar que nada daquilo poderia, de fato, ter sido previsto. ao ver um amigo seu com cortes de navalha no braço, ou ouvir sobre a demissão de um familiar, a perspectiva revisionista é o que dá a tônica do que vem a seguir: o que é imprevisto é oportunidade de aprendizado; o que é previsto e acontece mesmo assim é uma tragédia.
terremotos, sejam sociais ou geológicos, estimulam muito a perspectiva de que somos capazes de evitar que a natureza siga seu curso. não chega a ser um complexo de deus, mas um complexo de criar deuses. é o terremoto que forma o altar sobre o qual você passa a fazer sacrifícios e orações regulares. quem sabe se você alterar seu corpo nunca mais alguém vai te achar feio. policiar sua linguagem ou as ideologias que você torna públicas pode prevenir todas as críticas. altere sua personalidade inteira para satisfazer sua namorada e ela nunca vai cansar de você. vejo pouca diferença disso para acreditar que, além de haver uma força que controla se um deslizamento pode destruir sua casa inteira, a ira dessa força pode ser aplacada por uma oferenda de trigo ou a perseguição de um infiel.
as tragédias vão acontecer do mesmo jeito. a parte que nós ignoramos são todos os dias que elas não estão acontecendo.
egometria
não me lembro mais do que era a aula, nem exatamente o curso. mas lembro de participar do ponto de Jongo.
foi uma daquelas cenas que as pessoas não imaginam de verdade que aconteça na faculdade de humanas; imaginam coisas piores, ou tratam como algo tão tosco que nem merece atenção científica. história oral. que porra é história oral? todo mundo sabe que esse termo só existe pra todo mundo ficar pensando em um monte de piadas de baixo calão que não vão fazer. e não é que as piadas não sejam boas, sabe? é que você pensaria menos de si caso fizesse. outras pessoas vieram aqui te falar de como certas culturas e comunidades preservam sua história por uma via que não é documental nem imagética e o seu pensamento é tão limitado que você só quer pensar em boquete? não é hora de boquete. seria criancice da sua parte. não que isso faça você parar de pensar nas piadas.
trouxemos aqui esse pessoal de uma comunidade quilombola pra performar um ponto de Jongo pra vocês. foi o primeiro dia em que aprendi sobre os orixás. preciso fazer um bom esforço pra lembrar dos detalhes da maioria, mas lembro da descrição de um deles como guia da faísca inicial. não o fogo em si, nem o que cria o fogo; o ponto de discórdia entre ordem e caos no universo.
enquanto os tambores batiam, eu pensava em como tudo aquilo parecia meio bobo. eu não tinha um respeito (nem desrespeito) inicial pela prática religiosa por não ter tido qualquer tipo de criação religiosa; tenho uma imensa dificuldade de acreditar que tenho a capacidade de me deixar levar por uma crença, não importa qual seja. imagino que esse texto deixe bem óbvio se isso é verdade ou não.
depois, com o passar do tempo, os tambores continuaram batendo na minha cabeça. e eu pensava sobre o ritmo, e pensava sobre como foi finalmente participar do ponto, e eu pensava em como eu saí de tudo aquilo com um sentimento pouco definível. algo que podia ser transformado em outra coisa maior, caso eu alimentasse.
botar uma faísca no mundo é intimidador, seja lá qual for a intenção da faísca. toda faísca precisa ser medida com cuidado; a pequena demais não cria nada, e a grande demais destrói tudo.
e é na parte da faísca em que se tropeça. tentar fazer a faísca não é tão complicado, assim como nutrir o fogo subsequente. saber o momento certo, a dimensão certa, a forma certa a se atribuir, entretanto, exige cálculos que só exigem mais cálculos que só exigem mais cálculos. as definições das medidas são esotéricas. cada estudioso tem padrões próprios, parte de premissas diferentes. cada ciência pessoal pertence a uma pessoa diferente.
é necessário, antes, medir e delimitar de onde a faísca vem para determinar se merece existir. não se levar a sério de mais, não se levar a sério de menos. a balança precisa ser equilibrada, e nenhuma metáfora deve se deixar levar longe demais para não arriscar que falte espaço para a faísca crescer, pois todo o oxigênio ao redor foi sugado por quem decidiu criá-la. de um lado, o desejo de querer. do outro, o desejo de desejar.
eu quis botar isso no mundo. a parte que costuma preocupar é o quê se quis botar no mundo. mas quem é você pra botar alguma coisa no mundo?
ciências do ser
eu poderia dizer algo sobre esse texto ter demorado tanto, mesmo sabendo do componente masturbatório de escrever sobre escrever. não sei se foi o mais demorado, ou se demorou mais que os outros; não fui checar. cronologicamente, talvez não. emocionalmente, com certeza.
quando pensei em falar de tudo isso pela primeira vez, não saiu mais da minha cabeça. há toda uma outra versão desse texto ainda nos rascunhos, inutilizada, sussurrando que talvez seria melhor botar um pouco mais de firulas e beleza nessa grande autocirurgia cardiológica de peito aberto em público. eu poderia fazer o sangue brilhar mais, porque eu sei fazer isso. lembro de quando figuras de linguagem mais grandiosas saíam da minha cabeça durante as sessões de terapia logo antes de eu ouvir que eu idealizo demais. abstraio demais. analiso demais.
enrolada no meio de todas as outras ciências do ser, metafóricas ou literais, há a realidade material. o que é e o que não é no mundo concreto, preto no branco. não é o objetivo contra o subjetivo, e sim o real contra o imaginário. há a contagem de dias em que eu demorei pra escrever isso, há a contagem de pessoas que leram, há a contagem de reações públicas ou privadas a um texto que ninguém pediu e pelo qual ninguém nutria expectativa em especial. há as informações que eu dou sobre mim, a minha perspectiva. há cada uma das memórias pessoais que escrever isso tudo me traz, há cada uma das ligações que o passado mantém com o presente.
há uma pilha de sonhos, tanto oníricos quanto do âmbito das vontades, que nunca foram para lugar nenhum. há os sentimentos dos quais eu não falo, e evito pensar. há desconfortos. há prazeres. há medos e medições de probabilidade sobre reações a certas ações. há esperanças e ansiedades quanto à casca ao redor ser penetrada.
quanto mais eu escrevo, mais forte fica a ciência do meu ser. meu contorno é escrito, registrado, editado. alinho minhas prioridades e todo o processo teórico de pra que serve um ser humano: querer coisas. temos ciência do nosso ser, e ser é querer.
somos máquinas de desejos. geradores de sonhos. um processo que idealiza formas de se fazer continuar existindo. eu vejo a máquina, e não me contento em vê-la funcionando ou em executar sua manutenção: insisto em tirar cada um dos mecanismos e engrenagens para entender o processo desde o seu começo. até o último componente. até não sobrar mais nada.
e após todo o desmonte, cá estou eu, tentando montar a máquina de novo.
sonhei que a gente se encontrou do jeito que eu mais queria que acontecesse.
sonhei que você queria minha companhia tanto quanto eu queria a sua.
sonhei que deixei um silêncio se criar e você tentou quebrá-lo.
sonhei que as complicações eram só coisa da minha cabeça.
sonhei que não foi necessário rasurar as imperfeições.
sonhei que querer isso tudo poderia ser simples.
sonhei que você quis saber que eu sonhei isso.
sonhei que você sonhou comigo também.
sonhei que te escrevi do meu sonho.
sonhei que deixei você saber disso.
sonhei com você hoje.
não sei se esse texto ainda faz sentido. mas eu me sinto melhor agora que não está mais em mim.
agradeço se você leu até aqui, e espero que você também possa tirar algo disso. pode pegar o pedaço que quiser. sobraram vários parafusos.
absurdo. não leia se não quiser imergir em águas profundas. obrigada por compartilhar tamanha potência
porra, que texto potente. me fez chorar e querer voltar a sonhar. 💛