a criação de um nome é um ato de destruição - sandices #1
sobre possibilidades e pensamentos intrusivos
recentemente, tenho feito o esforço de tentar escrever um livro.
escrever é um saco.
eu tenho conseguido fazer isso de uma maneira mais prazerosa, criei personagens que estou curtindo nutrir e acho que finalmente estou desenvolvendo um estilo de escrita que eu gosto de usar - é basicamente o jeito que eu falo, que é o jeito que faz sentido pra mim. uma vez, li que o Asimov dizia que tentar estruturar uma história antes de escrever fazia ele sentir como se estivesse tentando escrever usando uma camisa de força. não sinto isso tanto com estrutura - tem ajudado bastante - mas acho que é o que eu sinto quando tento escrever parecido com o que eu acho que tá escrito certo. pontuação bonitinha, maiúsculas, coesão entre cenas, um narrador que fica no seu lugar, uma linguagem mais polida, um enredo mais enxuto.
mas escrever ainda é um saco. exige habilidades que eu tenho dificuldade em ter. exige foco. exige disciplina. exige ambição. eu quero escrever, e aí entro em guerra com uma versão de mim que parece tentar fazer de tudo para que eu não queira escrever. e se não der certo? e se ficar ruim? e se as pessoas acharem que eu sou chato?
recentemente, tenho ido atrás de um diagnóstico.
pensar de maneira sóbria não é do meu feitio.
sóbria no sentido metafórico. pensar a sério sobre a vida me deprime, o que sei que já é padrão do meu cérebro, que sente um conforto na desesperança. eu sofro do terrível mal de gostar de estar certo, o que não seria tão ruim se as pessoas ao meu redor não dissessem mais vezes do que o contrário que eu de fato estou certo. é o motivo necessário pro meu subconsciente validar o pessimismo, distorcendo sua imagem, vestindo-lhe a camuflagem de um realismo tênue, calmo na luz, aterrorizante na sombra, sempre me fazendo esperar pela catástrofe de dizerem que estou errado. faço um certo esforço para pensar ébrio, ir atrás de besteiras, e humor, e absurdos, e horrores, e entupir minha cabeça de ideias propositalmente, e perder os pensamentos sóbrios no meio do barulho.
mas pensamentos sóbrios vem. e com eles, a percepção de que talvez eu seja um monte de coisas. talvez eu seja mais capaz do que eu acredito. talvez eu esteja sendo explorado pelo trabalho. talvez eu de fato consiga terminar esse livro. talvez eu não goste tanto assim de me ver como um homem. talvez eu ande mesmo sendo meio preguiçoso. talvez eu seja autista. talvez eu devesse mandar aquela carta. talvez eu devesse ser mais eu. talvez eu devesse ser menos eu.
recentemente, tenho me sentido uma vida em transição.
escrever tem sido, ao mesmo tempo, fácil e difícil. funciono bem quando dois conceitos opostos existem no mesmo lugar ao mesmo tempo - gosto de como o mundo abstrato não se limita às nossas vãs leis da física. e, como o destino do destino é ser irônico, também funciono mal. oposições são interessantes, mas quando são fortes demais, são pouco produtivas. muita energia gasta delimitando a fronteira entre as duas, pouco espaço para a terra fértil da ambiguidade.
um dos motivos da minha necessidade de um diagnóstico são os pensamentos intrusivos. são muitos, muitos mesmo. e pensamentos intrusivos reais: não as piadas idiotas, ou os comentários repentinos; os que falam pra começar uma briga do nada, ou mudar totalmente de carreira pois eu com certeza seria um excelente padeiro (fiz pão três vezes em 28 anos), ou ver quantas vezes eu consigo girar antes de bater no chão depois de me jogar da sacada.
e mesmo considerando os suicidas, os piores são os destrutivos. criativamente destrutivos.
em alguns momentos, escrever tem sido um ato de coragem; em outros, não escrever tem sido um ato de maturidade. os pensamentos intrusivos ferem minha imaginação com um mundo de possibilidades, parasitando meus textos, tentando forçá-los a tomarem outras formas. delete tudo. comece de novo. mude a história inteira. isso não é um conto, é uma novela. esse personagem deveria ter outras características. pegue essas dez mil palavras e reedite tudo antes de continuar.
recentemente, tenho desgostado do nome que me foi dado.
escrever isso aqui é estranho, pois não sei como me sinto, ao certo. por que quero escrever esse troço? quero ser uma das pessoas legais que tem uma newsletter? quero me abrir? quero provar pra mim mesmo que consigo manter regularidade? quero de fato fazer algo útil ou só estou tentando me colocar numa forma escrita de hemorragia? o impulso de deletar tudo e escrever outra coisa vem. pense no que quer fazer antes. releia seus textos antigos, siga a linha daqueles que as pessoas gostaram. você quer agradar as pessoas, não quer?
e aí o impulso vai, efêmero. e eu me vejo pensando em identidade. somos o que fazemos? fazemos o que somos? eu mudo nos olhos dos outros ao escrever isso, e os outros mudam nos meus: é criado um palco, é armada uma plateia. do que, eu ainda não tenho certeza.
seja o que for, é uma possibilidade. e uma possibilidade só pode ser uma; não pode ser nenhuma outra.
tudo que é criado precisa de um nome. significados, significantes: nada existe se ninguém se refere ao nada. não existe, sem nome, uma pessoa, um livro, um personagem, um planeta, uma newsletter. um nome é uma possibilidade entre muitas, infinitas, entre todos os nomes que já existiram e que poderiam existir.
e também é o oposto de uma possibilidade. um nome guarda em si a decisão de que não haverá outro nome. não para a mesma coisa. uma palavra sinônima ainda é outra palavra, assim como uma pessoa com dois nomes nunca vai tê-los usados da mesma forma pela mesma pessoa. dar um nome para algo é a aniquilação total de todos os outros nomes que algo poderia ter.
um nome pode ser uma piada, ou pode ser um problema, ou pode ser a coisa mais bonita do mundo. pode ser um ato de transgressão, pode ser um erro, pode ser um insulto, pode ser um elogio, pode ser a primeira impressão que colore para sempre um relacionamento. um nome é uma decisão. um nome é o universo inteiro. um nome é o início de tudo.
e também é só mais um nome.
recentemente, tenho tentado sentir menos medo de mim mesmo.
e escrever. seja lá qual for o motivo.
Sou suspeita pra falar, mas acredito que a única forma (ou pelo menos a *melhor*) de encontrar uma identidade que reflita, de fato, o que você é, é escolhendo o próprio nome. Da forma que eu enxergo, não sei se é possível expressar com 100% de precisão qualquer coisa que eu penso pra qualquer pessoa que não seja eu. Linguagem é um filtro que, por mais complexo e vasto que seja, ainda inevitavelmente acaba impedindo que as nuances do que a gente pensa (e do que a gente é) sejam transmitidas pra outra pessoa, e acho que nomes são parte disso. Um nome passa uma impressão, passa uma *vibe*, e acho muito difícil que essa vibe te descreva com precisão se ele foi escolhido por outra pessoa.
Identidade é um troço confuso pra caralho e, pra mim, a vida é uma luta contínua pra tentar me expressar da forma mais genuína possível. Pra tentar ser enxergada como eu me enxergo. E o nome que escolhi é, também, a arma que escolhi pra essa luta. Explorar um nome novo, independente do quanto o atual pareça não te acolher, é esquisito e às vezes assustador. Pra mim, foi como nascer de novo. Começar do zero.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que não valeu a pena.